quinta-feira, 16 de outubro de 2014

"O modelo industrial de trabalho ainda prevalece"

Matéria extraída do portal do Jornal A Tarde, em 13 de agosto de 2014.

"O modelo industrial de trabalho ainda prevalece"

Eron Rezende

 
Foto: Mila Cordeiro.
Socióloga Graça Druck fala sobre qualidade nas relações de trabalho
 
Mesas de sinuca e pingue-pongue, máquinas de fazer pipoca e escorregadores, conectando um andar ao outro,  tornaram-se  marcas de ambientes de trabalho de empresas como Google e Facebook - e a expressão física de uma geração de jovens que busca equiparar trabalho e prazer. Para a socióloga gaúcha Graça Druck, coorganizadora do livro A perda da razão social do trabalho (Boitempo), a ideia de que todos, em um futuro próximo, serão submetidos a processos de trabalho mais afáveis, como os que são difundidos pelas empresas de tecnologia, no entanto, "não é uma tendência". "O cenário é  justamente o oposto. Em todo o mundo, as pesquisas mostram que os ambientes de trabalho estão mais áridos", diz. Socióloga com pós-doutorado pela Universidade de Paris e professora da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia desde 1994, Druck pesquisa o que chama de "precarização social do trabalho" -   um conjunto de estratégias utilizadas pelos empregadores que, de modo geral, tem levado ao desgaste psíquico dos trabalhadores. Nesta entrevista, ela fala sobre este cenário, sobre os atuais projetos que tramitam no Congresso Nacional para alterar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e sobre a importância do trabalho para o homem contemporâneo.
 
Pesquisas mostram um alto nível de insatisfação e estresse dos brasileiros em seus empregos. As condições de trabalho pioraram no Brasil?
Sim. Há um grupo de pesquisadores, do qual  faço parte, que tem chamado esse movimento de "precarização social do trabalho". O que vemos, nos mais diferentes segmentos e perfis, é a degradação da condição de trabalho. Não é um processo apenas brasileiro. Em todos os países, em menor ou maior escala, vemos um movimento de regressão social de conquistas trabalhistas consolidadas, sobretudo, na primeira metade do século passado.

A ideia de que é preciso ser apaixonado pelo trabalho, por outro lado, virou um mantra. A busca pelo significado mais profundo  do trabalho é uma resposta a essa precarização?
Essa é uma busca que se coloca desde sempre. Mas, sim, tem relação com a precarização. O trabalho tem duplo significado para o homem. Em um sentido, ele é fonte de prazer, já que é a expressão da necessidade que os indivíduos sentem em demonstrar a sua capacidade, de fazer, modificar e aperfeiçoar a realidade. Em outro sentido, o trabalho é fonte de sofrimento, porque  está sempre subordinado a algo ou alguém - e isso questiona a autonomia e a autoridade do próprio homem.

Mas a concretização do trabalho com significado ainda é restrita a uma elite. Essa busca é um novo separador de classes?
Para os segmentos mais pobres, o trabalho é exclusivamente um meio de sobrevivência - a possibilidade de fazer o que ama é limitada pela obrigatoriedade de ganhar dinheiro. Mas é preciso um olhar mais cuidadoso sobre a demanda por essa moeda imaterial. Pesquisas mostram que as empresas mais cobiçadas pelo trabalhador médio brasileiro continuam sendo as públicas. A estabilidade ainda é um valor importantíssimo.

Há um caminho para atenuar a atual degradação das condições de trabalho?
O menor ou maior grau de precarização  nos países é dado pela capacidade que as instituições que organizam os trabalhadores, como os sindicatos, ou aquelas que regulam o trabalho, como os tribunais, têm para agir. Creio que o caminho seja esse. Resistir em defesa de um trabalho efetivamente decente só pode ser feito coletivamente.

Uma geração de jovens com mentalidade coletiva e avessa a tarefas compartimentadas  está chegando ao mercado. Ela será capaz de afetar o modo como vamos trabalhar no futuro?
É verdade que vivemos num momento de questionamento do modelo tradicional de trabalho, baseado na alta competitividade e numa atitude carreirista, mas não acredito que a completa oposição a esse modelo será o futuro. Mesmo nas empresas do Vale do Silício (EUA), que abrigam as companhias que propagam o "novo" modelo de trabalho, com horários e hierarquias mais flexíveis, há um aspecto central mantido intacto: o cumprimento de metas. Mesmo no trabalho dito flexível há um estímulo à competição. A pesquisadora norte-americana Rebecca Cantieri publicou um estudo recente sobre a gestão de profissionais nas empresas do Vale do Silício. Ela chegou à conclusão que os ambientes de trabalho descontraídos não são o trunfo dessas companhias, mas, sim, a relação que os jovens empregados estabelecem com a chefia - o que está relacionado ao cumprimento de metas e à hierarquia. Acredito que sejam equivocadas as teses de que estaríamos construindo uma sociedade do conhecimento, pautada numa completa mudança na relação de trabalho. O modelo industrial ainda é muito forte.

A felicidade no trabalho, como uma realidade hegemônica, é incompatível com o capitalismo?
O trabalho emancipador, que esteja equiparado ao prazer, pode ser uma condição para a maioria das pessoas se mudanças radicais acontecerem. Isso significa romper uma estrutura que sustenta a sociedade capitalista. Desde que se identificou no trabalho uma fonte de valor, tivemos que lidar com a contradição de que o trabalhador permanece miserável ao lado da riqueza que se acumula. Conseguir um trabalho emancipador significa mudar as formas de controle e uso do trabalho pelos empregadores. Não é uma mudança incompatível com as bases do capitalismo, mas ela precisa se constituir no interior dessas bases.

Há um atual movimento do empresariado brasileiro para modificar a CLT. As leis trabalhistas brasileiras estão obsoletas?
Existe um esforço imenso dos empresários para mostrar que sim. Há projetos de lei para liberar sem nenhum limite o uso da terceirização, há ações que questionam o poder de decisão do Tribunal Superior do Trabalho, há um conjunto de propostas, batizado de 101 Propostas para Modernização Trabalhista, de autoria da Confederação Nacional da Indústria, que, em resumo, propõe o fim da CLT: tudo passaria a ser resolvido entre as partes, "sem a tutela do estado", como eles dizem. Para mim, isso é uma violência. Uma das justificativas dos empresários é que o mundo mudou. Claro, o mundo mudou, mas a própria CLT também passou por mudanças desde a década de 1940, quando foi aprovada. O que garante a necessidade de uma legislação trabalhista como a nossa é que a relação entre trabalhador e empregador é uma relação assimétrica - aquele que vende seu trabalho tem uma posição subordinada a quem compra. Não dá para questionar a CLT por onde o empresariado está questionando.

A senhora iniciou suas pesquisas na Unicamp, em São Paulo, e, há 20 anos, é uma pesquisadora ligada à Ufba. De que forma os baianos enxergam o trabalho?
Acho que há uma visão sobre o trabalho do baiano que não é exatamente uma visão baiana do trabalho. Trata-se de uma visão constituída e originada no Sul e Sudeste em relação ao Nordeste, e mais especificamente à Bahia. É uma visão que surgiu com o desenvolvimento do capitalismo no Sul e Sudeste - um capitalismo altamente industrial -, mas que expressa um total desconhecimento sobre os rumos da história do trabalho no Brasil. O trabalho escravo deixou uma herança, que foi a associação do trabalho como humilhação, sofrimento, imposição e propriedade. Isso esteve muito presente na Bahia, que conviveu fortemente com a mão de obra escrava. Mas, se olharmos para o desenvolvimento do capitalismo no país, veremos que ele chegou, se desenvolveu e se modernizou também na Bahia. É lógico dizer que um trabalhador do polo de Camaçari trabalha menos do que um trabalhador em Cubatão (SP)? Em geral, as pessoas não sabem, mas quando se faz uma comparação do tamanho das jornadas por região, incluindo o trabalho informal, a Bahia aparece com uma das maiores jornadas do Brasil. Basta olhar os ambulantes. Às seis da manhã, eles estão na rua. E só sairão 12, 14 horas depois.

Trabalho é inevitável? Somos, como Hannah Arendt sugere,  animais laborais?
O homem é um ser social e histórico. E a expressão dessa condição é a capacidade que ele tem de produzir aquilo que precisa para sobreviver. Quando nós conhecemos uma pessoa, a pergunta que logo fazemos é: "O que você faz?". E entendemos esse "faz" como o nosso trabalho - ninguém responde citando um hobby, por exemplo. Enquanto ser ativo, o homem se humaniza pelo trabalho. Essa é a nossa condição.

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